Outubro 2017
Ofereceram-me a oportunidade de testemunhar sobre a minha experiência de serviço voluntário europeu, concluída há cerca de mês e meio. Aceitei, embora ainda tenha alguma dificuldade em expressar-me sobre o assunto. Sinto-me um pouco como o gémeo de Einstein, aquele que seria enviado numa nave espacial a uma velocidade próxima da luz e que ao regressar à terra encontraria o irmão mais velho porque o tempo passaria mais lentamente para quem viajasse a grandes velocidades. Einstein estava certo porque a dilatação do tempo, prevista na Teoria da Relatividade Restrita, veio a ser confirmada: o tempo avança mais devagar num relógio em movimento em relação ao que acontece num relógio em repouso.
A minha viagem de alta velocidade teve início no momento em que dei início aos preparativos para partir, não mais de duas semanas antes do voo. Foi a Rota Jovem a enviar-me. O destino era Pordenone, uma pequena cidade tão desconhecida agora para o mundo como o era para mim há um ano. A quem me perguntava para onde ia, respondia, “uma pequena cidade perto de Veneza”. Não era mentira, era uma simplificação à qual os próprios pordenonenses recorrem quando se afastam do nordeste italiano. No entanto, não me passa pela cabeça simplificar agora, quando sei melhor. Pordenone é capital de uma das quatro províncias que constituem a região Friuli-Venezia-Giulia, localizada no nordeste italiano, vizinha da Eslovénia e da Áustria e banhado a sul pelo Adriático, incomparável ao nosso mar, que é oceano, mas esse é outro predicado. O que a maior parte das pessoas também não saberá é que a Friuli é guardiã de autênticas gemas naturais de rara beleza, recantos ainda desconhecidos do grande público. Gostaria, talvez egoisticamente, que assim permanecessem.
Evidentemente, não me candidatei a este projecto por Pordenone, ou pelo sonho italiano, que é suficiente para levar tantos jovens voluntários a Itália todos os anos. O projecto, como descrito, consistia genericamente em fazer parte de uma pequena comunidade terapêutica para pessoas com distúrbios mentais, ajudando os seus residentes a percorrer o caminho em direcção à autonomia através da vida comunitária. O que sabia disto? Rigorosamente nada e foi precisamente isso, e um sonho muito muito antigo, já um pouco escondido, de voluntariar no estrangeiro, que originou a minha candidatura. Um ano nesta comunidade, a Casa Ricchieri, foi outra viagem alucinante. Julgo que o facto de quase nada saber, nem mesmo a língua na fase inicial, foi aquilo que manteve a antena de recepção sempre ligada. Isso e as pessoas, claro.
De um lado, os residentes e as suas idiossincrasias no geral, tanto as de carácter como as patológicas, afinal que sentido há em compartimentar seres humanos quando o objectivo base do projecto era precisamente aquele de descompartimentar. Em 1973, Marco, um cavalo de madeira azul, construído nos laboratórios artísticos do quase encerrado manicómio de Trieste, percorreu as ruas da cidade como símbolo da liberdade e humanidade dos doentes mentais. Um ser humano pode estar doente, seja qual for o tipo de doença, e ser simplesmente humano, com a dignidade que lhe é devida porque existe, ponto, como todos as pessoas, de resto. O Marco ainda tem muitas estradas por este mundo fora para palmilhar. Do outro lado, a equipa, os operatori, que me acolheram, me ensinaram continuamente - mesmo quando não se apercebiam de estar a fazê-lo -, com quem partilhei todos os vários momentos, os melhores e os piores, de uma vida em comunidade. Estas comunidades são uma herança basagliana. Franco Basaglia, o psiquiatra responsável pela reforma da psiquiatria na segunda metade do século XX em Itália. Alegro-me em saber-lhe o nome. A todas estas pessoas, dirijo um eterno agradecimento, por me ajudarem a ver o mundo pela substância, em todas as tonalidades do arco-íris.
Não parti embebida no sonho italiano (o que não significa não ter possuído qualquer interesse na bota da Europa à priori) mas saborei-o enquanto o vivi, desfazendo-me de todos os estereótipos tradicionais - pizza, pasta, máfia - e substituindo-os pela verdade dos meus sentidos. A disparidade entre o norte e o sul é acentuada, em todos os sentidos, desde o económico à cultura da personalidade. Se no sul encontrei a caricatura do italiano aberto, extrovertido, barulhento, no norte encontrei-os mais reservados, talvez temperados pela proximidade às fronteiras europeias. O italiano pode ser a língua nacional mas ignorar o número tamanho de dialectos e línguas usados quotidianamente em todas as regiões do país seria ter caminhado todo o ano de ouvidos tapados. Pessoalmente, tomei um gosto particular ao italiano falado em Pordenone, um pouco veneto, na verdade, e ao friulano da Carnia, a norte, não obstante ser quase tão incompreensível agora como o era há um ano.
Não existe cidade que não tenha recorrido à Santíssima Trindade italiana para nomear as suas vias e praças – Garibaldi, Vittorio Emanuele II e Cavour -, pais da Itália moderna, séculos mais jovem que o nosso pequeno rectângulo, muito mais tranquilo e unido. As cidades são museus vivos de história e arte e as pequenas aldeias, pelo menos as friulanas, são pedras preciosas. A gastronomia italiana é, de facto, de excelência e, segundo os próprios, intocável. A melhor pizza é, sem sombra de dúvida, a napolitana. Os risottos fazem-se a norte, aquecem as noites frias de Inverno. A polenta, meh. A melhor pasta, da Emilia-Romagna para baixo. O canoli siciliano é a sobremesa de deuses. Queijo, queijo, queijo. Pasta all’oglio e peperoncino! Grappa, talvez nunca mais. Cultura do aperitivo, vinhos. O melhor tinto provei-o em Erto. Vin brulé no Natal. Café, Lavazza, da manhã à noite. Trieste e a Piazza Unità, de braços estendidos para o Adriático. Veneza, de noite. Santo António de Pádua, na companhia de espanhóis. Bolonha, das duas torres, dos pórticos, dos segredos, dos jovens. Verona de Shakespeare. O complexo sem cor, Milão, animado pelos encontros e reencontros. Florença de Dante e do Renascimento. A grandeza laranja de Roma. O sol de Inverno de Nápoles e a sua decadência sedutiva. A ameaça silenciosa de Pompeia. O sonho siciliano. Gorizia, cidade fronteiriça, de guerra. Os dolomiti friulanos. O amor em Ileggio. As gravas. As extensas pianuras verdes sem horizonte. Um pouco mais longe, a surpresa de Zagreb e o sossego esloveno. Pordenone, grigio (cinzento) Pordenone.
Foram várias as vezes que olhei para o céu, da janela de casa, e vi-o cinzento, sabendo que começaria a chover a qualquer momento. Sabia, no Inverno, que o frio húmido congelaria até as minhas narinas e que afastar-me da ventoinha durante as tardes de Verão para sair à rua seria o equivalente a um suicídio. Depois, os mosquitos. Não existem mosquitos como aqueles de Pordenone. Dizem que amamos verdadeiramente quando aprendemos a amar os defeitos do nosso companheiro. Terá sido amor? Nunca teria imaginado encontrar numa cidade desta dimensão (50 000 habitantes, sensivelmente), um grupo disposto a acolher todo e qualquer estrangeiro ou pessoa em necessidade de companhia. Diziam saber que não era fácil fazer amigos no norte. Foram os italianos, a história das nações, a anarquia, o melhor café, o sonho colectivo do Porto, as merendas no Tomadini, a música, sempre a música. O fado, a bossa-nova, a MPB, o jazz das manhãs, a maldita rtl, o jive, o rock da hora de almoço, as velhas baladas italianas, a semana dos blues.
Foi sobretudo a oportunidade partilhar casa com as pessoas certas. Não havia sensação tão familiar como chegar a casa nos primeiros quatro meses e encontrar a Maria, portuguesa, na cozinha, a contas com o vegetarianismo; ouvir rock espanhol e flamenco todos os fins-de-semana acompanhados pelo trautear incessante da Zulema, o furacão que complementava a minha tranquilidade; as experiências “pseudo-asiáticas-francesas” na cozinha da Elodie, que provavelmente não seriam nada de especial mas eram sempre deliciosas, e o verdadeiro crepe da despedida; os nossos hóspedes, uns da casa, que entravam e saíam quando queriam, outros de uma noite, para desenrascar; os fantasmas que inventamos, aqueles que lá estariam de facto e a companheira de quatro patas que nunca existiu.
Era uma vez uma experiência de serviço voluntário europeu. Intensa e, por isso, fugaz. O tempo passou, diz-me o calendário civil, mas não o sinto. Uma suspensão, como aquela das partituras. Um respirar fundamental. Não tenho conselhos. Quem tem de partir, parte sempre. Só me resta agradecer por tudo, a todos. Até uma próxima.
Blog da Mariana - https://grigiopordenonept.wordpress.com/
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